quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Sobre segurança na trilha: Expedição Caloura


Nanda, Indi e Eu com vista para os Gerais do Vieira

Todo pai coloca rodinhas na bicicleta do filho pequeno que está aprendendo pra evitar as quedas. Os mais cuidadosos o acompanham segurando a bicicletinha com medo de que caiam, mas eventualmente eles vão ter que seguir sozinhos e sem as rodinhas. A partir do momento em que as rodinhas não estão mais lá, filho e pai assumem o risco de uma queda. Ao assumir riscos, você tem que lidar com as consequências e estar preparado para tal. Na trilha, isso não é diferente. Uma hora ou outra você vai acabar se machucando e você tem que se preparar da melhor forma para estes contratempos. Por isso é da maior importância que assuntos como segurança e primeiros socorros sejam levados a sério antes de botar uma mochila nas costas e se meter no meio do mato.


No último carnaval, eu, Nanda (minha namorada) e Indira (minha amiga trilheira que me acompanhou na Expedição Diamante Bruto e na Travessia do Parque Nacional do Caparaó ) resolvemos ir a Chapada Diamantina e fazer a trilha do Vale do Paty. Tempo disponível e trilha relativamente fácil se mostraram perfeitos para fazer o batismo de Nanda no mundo do trekking. Apesar de ser uma viagem resolvida apenas em cerca de 2 semanas, saímos bem preparados para a trilha, pois eu já estive no Vale do Paty na Expedição Revelião e fui no Cachoeirão em outra oportunidade com Guilherme (companheiro de várias outras trilhas).


Galera que se juntou ao nosso grupo
Da esquerda pra direita: Indira, eu, Nanda, Vicente, Sil, Ricardo, Victor e Thaila


No segundo dia de expedição, saímos da Ruinha e fomos até o Rio Funis que fica a 20 minutos de caminhada. Assim que começamos a descer o rio, Nanda escorregou numa pedra e acabou com um corte fundo no pé esquerdo. Seu pé não parava de sangrar e eu me vi desesperado, pois não tinha carregado o kit de primeiros socorros até o rio. O que eu fiz foi pegar a minha camisa e tentar estancar o sangue com ela. Eu apertava e ela chorava de dor, mas não havia mais nada que eu podia fazer ali. O pior sentimento que já senti na minha vida aconteceu bem naquele momento: incapacidade. É péssimo ver alguém sofrer, sangrar e não poder fazer nada. Especialmente quando isso acontece com alguém que você ama. Tudo o que eu podia fazer ali, naquele momento, era apertar o ferimento com minha camisa para estancar o sangue.
Eu não sou o cara mais religioso que conheço, mas pedi a Deus ou o que quer que ele seja, que nos ajudasse naquela hora e, tendo sido coisa dele, ou não, apareceu um grupo fazendo uma trilha que eu nunca vi ninguém fazer: a subida do Rio Funis com mochila cargueira. Eu não faço idéia de onde eles vieram, mas foram de enorme ajuda, pois carregavam um kit de primeiros socorros e nos ajudaram muito pra conseguirmos tirar Nanda de lá. Após estancarmos o sangue, limpamos o ferimento e um dos rapazes fez um curativo com gase e esparadrapo no pé dela. Logo depois ele passou uma atadura pra proteger melhor o ferimento e iniciamos a volta à Ruinha. O outro rapaz, Franco, atravessou o rio com Nanda nas costas para que ela não molhasse o pé. É incrível como existem pessoas boas no mundo. E é mais incrível ainda como elas aparecem em nossas vidas em momentos tão cruciais.

Após chegarmos a Ruinha, pudemos cuidar melhor do ferimento de Nanda. Limpamos parte do pé, avaliamos o ferimento, trocamos os curativos e comemos. Era muito importante que ela comesse, pois ela havia perdido muito sangue no rio.

Ficamos acampados na Ruinha, por 3 noites. Muitas pessoas passaram por ali e cada uma dava a sua contribuição. Todos ajudavam como podiam. Alguns emprestavam remédios, curativos diferentes e passavam até remédios naturais. Seu João, dono do camping da Ruinha, nos emprestou um colchão para que passássemos um dos dias em que estava muito sol pra ficar na barraca.
Pessoal, onde quer que cada um de vocês esteja, aqui fica o meu muito obrigado para vocês. Muito obrigado por toda a ajuda prestada, toda a preocupação e todo o carinho. Pode ter certeza que passaremos toda essa energia boa a frente.


Acampamento na Ruinha

Na segunda feira, Nanda já conseguia botar o pé no chão sentindo menos dor e o corte parecia estar fechando. Decidimos arrumar tudo e seguir rumo a Guiné, um povoado que pertence a Cidade de Mucugê e também ponto de civilização mais próximo da Ruinha. Para lá, teríamos que subir a Rampa, uma subida muito inclinada que iria exigir muito de todos nós: de Nanda, devido ao ferimento; de mim, pois eu estava com o peso da minha mochila e da mochila de Nanda nas minhas costas; e para Indira, que também estava mais pesada devido à nova divisão de cargas.

Vídeo 01 - A Rampa



Fizemos a subida da Rampa bem devagar. Nanda sentiu muitas dores, mas venceu aquele obstáculo que era o maior de todo o dia. Ficamos muito felizes ao chegar lá em cima e paramos por cerca de meia hora pra descansar, comemorar e apreciar a bela paisagem.


Após a difícil subida da Rampa

Passada a subida da Rampa, tínhamos um terreno não tão difícil até a descida do Beco, que chega em Guiné. No entanto, ao fim da caminhada até o Beco, nossos corpos já estavam desgastados e a descida se mostrou um jogo de paciência. Indira desceu rápido pra evitar dor nos joelhos. Eu acompanhei Nanda durante toda a descida de perto. Ela desceu todo o Beco mancando e eu reclamando da mochila pesada nas costas, mas pelo menos estávamos chegando em Guiné.

Vídeo 02 - O Beco


Ao chegar em Guiné fomos, é claro, para um bar. Comemos, bebemos e fomos procurar um lugar para dormir. Ficamos hospedados na pousada de Dona Nenza (20 reais o pernoite com café da manhã e água quente no chuveiro), que é uma senhora muito, mas muito agradável. Ela ficou preocupada com o ferimento de Nanda e nos ajudou com um remédio natural que ela mesma preparou. Estar hospedado lá em Dona Nenza era como estar na casa da minha vó. Ela nos tratou muito bem e foi bastante atenciosa com todos nós. Dormimos lá, e no dia seguinte fomos para Palmeiras para retornar a Salvador.

É muito difícil de explicar o que sentimos quando chegamos em Guiné, ou mesmo quando conseguimos subir a Rampa. É uma mistura de orgulho com alívio e felicidade. É, mesmo, muito difícil de explicar. Talvez seja essa sensação que nos faça continuar. Durante alguns momentos eu senti medo de levar Nanda em outras trilhas, mas ela disse que pretende continuar trilhando, mesmo sabendo o perigo que passou, sentindo dores, fome, sede, cansaço e se ferindo, não só no pé, mas também com vários arranhões nas pernas durante a viagem. A sensação que temos ao chegar a um objetivo paga tudo isso. O que eu posso fazer é ter a mesma atitude que o pai tem com o filho que aprende a rodar bicicleta: auxiliar em sua atividade, alertar dos riscos e ajudar a lidar com as consequências. Só assim o aprendiz poderá sentir aquela mistura de tantos sentimentos bons, que chamamos de Liberdade.